terça-feira, 23 de junho de 2009

LÍNGUA ESCRITA: MECANISMO DE INCLUSÃO/EXCLUSÃO SOCIAL

José Antonio Sousa Silveira
josansilver@hotmail.com

O PODER DA LÍNGUA ESTÁ NA LÍNGUA
Diferentemente do que se imaginou, quando a revolução tecnológica atingiu seu ápice e o mundo se curvou diante das grandes descobertas e avanços tecnológicos - da micro-informática, das telecomunicações e da robótica, para não citar todas as outras conquistas das últimas décadas do século XX e início do terceiro milênio - os livros continuam ocupando espaço privilegiado enquanto meio para difusão do conhecimento.
Talvez essa afirmação não se constitua, sob determinado ponto de vista, em nenhuma novidade. Porém, de modo bem específico, mais particularmente no que tange às previsões mais negativas feitas logo que o mundo passou a ser dominado pelas máquinas, ou seja, quando a aquisição e o manuseio das novas tecnologias - as já citadas e tantas outras quase indispensáveis hoje – o que era propagado e tido como certeza absoluta, era a idéia de que os livros estavam fadados ao esquecimento e ao abandono.
Felizmente, tais previsões não só não se confirmaram como o que houve foi um efeito contrário; é notório o aumento no volume de publicações de livros, de artigos em revistas e também nos meios eletrônicos. Hoje há todo um reconhecimento da importância vital que tem a língua escrita, embora o processo de democratização do acesso ao material escrito não tenha acompanhado o mesmo ritmo.
Esse reconhecimento, do papel que têm os livros, ou qualquer outra fonte de conhecimento que faz uso da língua escrita, não coloca o ato da leitura e da escrita no mesmo nível de relevância. Ao contrário, o que se tem percebido, nessas últimas décadas, é que essas práticas perderam definitivamente sua função social no espaço da escola e hoje são vistas apenas enquanto atividade meramente escolar.
Nesse sentido, há de se examinar, com mais critério e acuidade, as práticas de leitura e de escrita, quer no âmbito escolar, quer fora dele. No espaço escolar, deve-se verificar de que forma essas práticas vêm sendo empreendidas e de que maneira, também, essas mesmas práticas têm contribuído para a conscientização de que ler e escrever são, a priori e a posteriori, atividades essencialmente sociais. Não se pode negar que no espaço social, no cotidiano das pessoas, em suas atividades diárias, querem profissionais ou não, a língua escrita está sempre presente, de uma forma ou de outra.
Partindo desse pressuposto, pode-se afirmar que o ensino de língua materna tem falhado nesse aspecto, qual seja o de levar os usuários da língua à tomada de consciência de que a apropriação da língua escrita justifica-se tão-somente pela demanda que toda sociedade letrada tem: aprender a ler e a escrever enquanto condição única de inserção na sociedade, embora isso não signifique participação efetiva na sociedade da qual faz parte.
Apropriar-se dessa modalidade da língua, nas suas práticas de leitura e de escrita, não somente no sentido de domínio de atos mecânicos de codificação e decodificação desses símbolos gráficos, mas como atividades significativas. Significativas em termos de (re) significação do mundo, do eu, do outro, do indivíduo em via de tornar-se sujeito, mas um sujeito autor do seu próprio discurso, não um mero repetidor do discurso alheio. E isto deve ser entendido como um dos grandes objetivos para o ensino de língua materna seja ela qual for, no nosso caso, a Língua Portuguesa.
Considerando a situação dada, pode-se agora dizer que falar em inclusão social sem que se faça referência ao instrumento primordial e indispensável para que todo e qualquer indivíduo torne-se sujeito, é permanecer no discurso esvaziado de sentido, é fazer uso do discurso demagogo. Oportuno salientar que é por intermédio da língua que as pessoas expressam seus sentimentos, desejos, anseios, vontades, angústias. É ela a condição primeira para o tão propagado exercício da cidadania.
Sabe-se que exercer a cidadania implica, especialmente no Brasil, reclamar direitos, argumentar deveres, informar-se deles. E a maneira mais eficaz para se atingir tal objetivo é utilizar-se da língua, não apenas na sua forma oral, mas, sobretudo, na modalidade escrita, uma vez que esta tem seu uso socialmente prestigiado, em detrimento da expressão oral.
Não é necessário um raciocínio lógico-matemático apurado para se equacionar algumas questões que se colocam. Sabe-se que a língua escrita é socialmente prestigiada (não esquecendo que somente a chamada norma culta ou padrão). Já é senso comum entre os especialistas o fato de que o contato ou a prática com essa modalidade, pelo menos para boa parcela da população, está restrito ao espaço escolar e não há como negar que, hoje, ler e escrever são atividades quase que exclusivamente escolares.
Sabendo-se também que estas mesmas atividades deixam muito a desejar, quantitativa e qualitativamente, na maioria das escolas brasileiras, pergunta-se então: o uso da língua escrita é igualitário para todos? Todas as pessoas têm as mesmas condições e possibilidades de acesso e uso da língua escrita? Ler e escrever são práticas sociais efetivas e significativas para todos? A escola atribui à língua escrita os mesmos valores que ela tem fora do contexto escolar? Seguramente, as respostas para todos esses questionamentos são múltiplas e variadas, mas, sem dúvida, convergem para um só fato: a exclusão social via língua escrita.
Embora pareça estranho dizer que alguém é colocado à margem da sociedade porque não domina a língua escrita, mas são muito comuns situações em que boa parcela da população brasileira deixa de ter acesso ao conhecimento histórico e socialmente construído, aos bens culturais ou é impedida de receber algum benefício do qual tem direito, sendo, portanto, lesada por não saber ler e/ou escrever. Ou mesmo sabendo ler e escrever não atribui significado para aquilo que lê e/ou escreve, além de fazer uso de uma variante da língua que se afasta do padrão, de uma variação desprestigiada pela elite, acaba sendo estigmatizada, ou seja, excluída de qualquer jeito.
E é a partir dessa perspectiva que se pode afirmar que a língua escrita constitui-se em um mecanismo de inclusão/exclusão social: quem tem mais habilidades com essa modalidade da língua terá mais oportunidades, ao passo que quem não as tem estará em completa desvantagem, vulnerável a uma marginalização, em todos os sentidos do termo.
Assim, com este texto tem-se a pretensão de abrir discussão sobre como a língua escrita se materializa em mecanismo de inclusão e/ou exclusão social. Espera-se que os argumentos aqui arrolados encontrem ecos na razão daqueles que se interessam pelo assunto.
Para, além disso, que suscite reflexões acerca de um problema de ordem social e comunitário, mas que se esconde no fingimento hipócrita daqueles que preferem ignorá-lo, pela manutenção do status quo, a ter que encará-lo, trazendo-o para o cerne das questões sociais urgentes.

LÍNGUA: produto cultural, social ou histórico?
Longe de se querer questionar a gênese da linguagem enquanto faculdade inerente ao homem, de se estabelecer diferença meramente didática entre linguagem e língua, ou de simplesmente apresentar conceitos de língua em diferentes perspectivas, aqui se pretende apresentar informações e, sobretudo, argumentos coerentes que expliquem ou mesmo justifiquem como ela (a língua) pode se tornar tanto um mecanismo de inclusão quanto de exclusão social, para tanto, é necessário recortes do objeto de análise, no caso a língua, enquanto produto cultural, social e histórico.
Quando se fala que a língua é produto cultural, está implícito que este produto também é social e histórico ao mesmo tempo e separadamente. Por mais paradoxo que possa parecer, esta informação é verdadeira. Toda língua é resultado de processos culturais, pois reflete o pensamento daqueles que fazem parte da comunidade lingüística que dela fazem uso e que por meio dela transmite todo o conhecimento culturalmente construído durante toda a sua existência e ao longo das sucessivas gerações. Todas as manifestações de uma determinada comunidade ou sociedade só se constituem enquanto cultura porque há um mecanismo de veiculação. Se assim entendido, não se poderia falar da cultura de um povo sem que seus participantes não fizessem uso de uma língua(gem).
Uma vez de posse de um conjunto de signos utilizados para permitir a interação entre os participantes de determinado grupo ou comunidade, tais signos (verbais e/ou não-vebais) só se constituiriam uma língua se convencionados, ou seja, a língua é um contrato social entre as pessoas que fazem parte deste grupo.
Neste aspecto, a língua é um produto social. Não só por isso. Ela possibilita a interação e a socialização entre as pessoas tanto de um mesmo grupo como de grupos diferentes, desde que estejam de acordo com as regras convencionadas. Mais que isso, a língua é por excelência um produto social pelo simples fato de ser ela quem determina e caracteriza a própria sociedade, guardando ela mesma a idéia de nação, de Estado.
Quanto ao último aspecto, dizer que a língua é um produto histórico é afirmar que a língua, enquanto organismo vivo, evolui, transforma-se, modifica-se não apenas no espaço, mas, sobretudo no tempo. Ela tanto é causa como efeito da história do homem.
Vê-se, portanto, que esses três aspectos se imbricam na essência de uma língua: a língua é um produto social, cultural e histórico, embora possam ser considerados distintamente.
A partir desta perspectiva, a participação ou a não-participação em uma determinada cultura ou sociedade estará condicionada inevitavelmente a apropriação da língua dessa sociedade ou cultura.
Considerando-se que as sociedades mais desenvolvidas encontram-se em um estágio bastante avançado no que se refere ao processo de letramento, ou ainda, o mundo globalizado só se tornou assim em função de as sociedades se tornarem letradas no sentido de fazerem cada vez mais uso da cultura escrita, fica bastante evidente que quem não tiver domínio da língua escrita estará sujeito a todos os tipos de exclusão, do mesmo modo que quem melhor dominar esta modalidade da língua não encontrará grandes dificuldades de inserção no meio social do qual faz parte.

EM VIA DE CONCLUSÃO
Seguindo esse raciocínio, não há como negar que a língua em todas as suas possibilidades de uso se constitua uma via de mão dupla, no sentido de que tanto serve como mecanismo de inclusão das pessoas no meio social como também é usada como um instrumento de exclusão, para o não exercício da cidadania. Isto se o termo cidadania for concebido como o pleno exercício dos direitos e deveres que compete a cada indivíduo que forma uma comunidade, uma sociedade.
A inclusão/exclusão via linguagem pode ser explícita quando se percebe que o próprio exercício da cidadania está associado a uma variedade de fenômenos sociais tais como educação, escola, saúde, habitação, ecologia entre outros que demanda o uso da língua, não apenas na modalidade oral, mas, sobretudo na escrita.
Embora para alguns estudiosos declarar que a relação entre o exercício da cidadania e o processo de alfabetização escolar é fruto de especulações e fazem parte do senso comum, insiste-se no argumento de que usar a língua nas suas diversas possibilidades permite que as pessoas percebam as ideologias subjacentes nos discursos, político, jurídico, médico, jornalístico, linguístico, filosófico e religioso, por exemplo, interagindo. E isto é exercer a cidadania.

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